Da Filosofia ao Engajamento

Da Filosofia ao Engajamento

Tereza Erthal

A liberdade é muito mal compreendida. A princípio, um substantivo abstrato que tem um valor prático, pois acaba funcionando ideologicamente como uma oportunidade ou o desejo de libertar-se de responsabilidades, de problemas, de limites. O senso comum acredita ser a liberdade uma coisa, algo já dado, que implica em se fazer o que se bem se aprouver, vontades sem restrições. Nada mais avesso ao sentido existencial de liberdade!
Há uma confusão de definição entre liberdade, libertinagem e livre arbítrio. Libertinagem, no sentido figurado, significa , indisciplina; livre arbítrio, a possibilidade de decidir, escolher em função da própria vontade, isenta de qualquer condicionamento, motivo ou causa indeterminada. Ambos são liberdades em fuga.
“Somos, para nós próprios, a nossa própria obra de arte”.( Sartre). Isso significa um projeto transformador e pura criatividade. Somos livres para escolhermos, escolhemos ser, a partir do nosso projeto original. Nosso desejo de ser Deus, ou a perfeição, corresponde ao desejo de retirar a angústia, a falta, o erro, os sonhos…, na tentativa de navegar em águas tranquilas, seguras; desejo de controlar o futuro e extinguir as surpresas. Contudo, não há garantias para assegurar isso e asseverar o escoamento ao existir. “Ser é agir”, isto é, existir faz-se na ação. Somente na ação, através da escolha, posso construir minha existência e a necessidade psicológica. Isso explica quão difícil são tais opções: escolher é arriscar-se. No risco, abrimos novas possibilidades, antes encobertas pelo medo. Nessa abertura aparece o embate com o próprio ser, com aquilo que pretende ter como realidade acabada e concluída.
O homem atual anda na corda bamba entre a segurança do Humanismo triunfante, em busca de um eu autônomo, e os discursos sobre a dissolução do eu, sem deixar de ser objeto. Os que tentam compreender o homem, entendem a realidade humana como um conjunto de possíveis. E isso requer diálogo, interdisciplinar, porque não podemos olhar o homem com um único olhar. São muitas as perspectivas- História, Antropologia, Sociologia, Filosofia, Psicologia, etc. Toda a compreensão do homem, deve ser interdisciplinar porque o homem é diálogo.
As balizas de uma concepção geral do homem, o próprio homem ocidental, exibem um retrato de um homem que é dois: somos hebraico-cristãos e greco-romanos. O sucesso e a necessidade psicológica contemporânea tem tudo a ver, nutrida por uma crise perene, com a cisão originária.
Historicamente, a ponderação sobre o humano é sempre a última a surgir, muito depois dos astros. Isso talvez esconda uma extrema prodigalidade, já que cada cultura inventa um homem, uma realidade afastada da fixação dos astros. Enquanto a Filosofia contempla a realidade, o Psicólogo se apoia na experiência desta realidade- a experiência é tudo o que o indivíduo pode ter dela. O Psicólogo ajuda o cliente a experimentar a sua existência.
A Psicologia seria assim possível como ciência? Os que palmilham todas as concepções do homem, os que compreendem como expressão de sua radical instabilidade, e interpretam a realidade humana como um conjunto de possíveis, tornam incerto qualquer tipo de ancoradouro estável. Mas o que se realmente se busca está no reconhecimento de um estatuto ontológico.
Existe uma grande variedade de perspectiva em que se analisa a realidade humana, dentro e fora da Psicologia.Há uma recusa de qualquer pretensão de um único ato de visão. A Psicologia é uma ciência jovem, mas a maturidade não significa simplificação de algo tão diverso. O trabalho dialógico é a única necessidade externa.
Um Psicoterapeuta existencial deve mostrar-se cônscio de todos os múltiplos caminhos que se oferecem hoje às sondagens psicológicas, o que não impede que ele faça as suas escolhas e comprometa a sua resposta com visões determinadas, sem concessões à tolerância. Para um pesquisador, o mundo é o próprio laboratório. É preciso se comprometer com uma compreensão destituída de laivos de aquiescência passiva. Há um compromisso importante: se somos muitos, os muitos se entrecruzam e os olhares se tornam inevitáveis, incontornáveis.
Quais seriam as fronteiras da atividade terapêutica? Onde começa a terapia e onde ela pode ser dada por concluída? A procura pela terapia se dá por uma falta: um tipo de questionamento pessoal, o que se quer é preencher esta falta.Ainda não percebe que é esta falta que abre a janela para várias possibilidades, mas aos poucos vai percebendo que faltas existirão e que mais importante que o seu preenchimento, é o processo, a forma como lida com isso. Em qualquer caso, o homem deve ser, tanto quanto possível, responsabilizado por si e pelos outros, e deve ser levado a assumir a completude de sua liberdade. Tudo é pedagogia: a terapia “cura” e educa e nela faz-se presente a figura do outro.
“ A liberdade é a existência e nela a existência precede a essência.” Nunca foi tão forte e necessária a conscientização dessa verdade. Criamo-nos e afirmamo-nos nessa liberdade fazendo essas verdades. Nada pode salvar-me de mim mesmo: sou o responsável pela minha existência, pela minha escolha, e ao fazê-lo, faço-o como pessoa. Posso lançar-me aos meus possíveis a cada momento. Assim, a definição de mim mesmo é escrita pela sucessão de meus atos, em cada situação concreta. Não posso ser definido de uma vez por todas como isso ou aquilo, pois invento o meu ser em cada situação em que me vejo laçado. A percepção limita os possíveis. Quanto maior a percepção, maior a abertura. No instante em que existo, sou um fazedor de escolhas
De uma Ontologia( estudo do ser, homem como homem) evoluindo para uma Psicanálise proposta em suas obras “Ser e Nada”, “Questão de Método”, “Idiota da Família”, Sartre apresenta suas mudanças pela função do pensamento anterior com as teses da sociologia.Uma forma de compreender o homem numa visão integrada da Psicologia com a Sociologia.
Nos tempos atuais, ganharam visibilidade as psicoterapias que valorizam a possibilidade de o homem olhar para si mesmo de forma mais destemida e mais responsável pelas suas ações. A Psicoterapia não é uma práxis sem esforço! O trabalho convida o cliente a ser responsável mais por si mesmo, a tomar a si como livre para ser, para criar a sua história. Também convida a tomar consciência de que não caminha sozinho. O indivíduo é ser-para-outro, que significa que a minha consciência precisa ser reconhecida pelo outro para existir. Isso também não é uma tarefa fácil, uma vez que a relação é conflituosa: há um embate de consciência na tentativa de não perder a liberdade. É quando o outro é colocado como objeto, o em-si, sem se dar conta de que não há como apreendê-lo como tal porque também é consciência. Como objetos, tentamos nos transformar exatamente naquilo como aparecemos pro outro: se existe censura, sou objeto de reprovação; se existe aprovação, sou objeto de admiração. Seja qual for o olhar, me petrifico! Esta é a base da frase famosa “ O inferno é o outro”, citado na peça “ Entre Quatro Paredes”. O inferno não é um lugar, mas o olhar; o próprio olhar projetado no olhar do outro.
A dificuldade de assumir a si, de tomar a si plenamente e se construir sem referência total do outro, faz o homem perder a principal característica humana ao meu ver: a liberdade.Neste inferno, que representa a morte em vida, condenam-se os homens quando renegam sua liberdade e tentam negar a de seus semelhantes.Julgam outras liberdades porque nunca reconheceram suas próprias liberdades. Estar morto é ser presa dos vivos. De nada serve recomeçar a vida se não se consegue modificar a própria atitude! A morte transforma a vida em destino. A ideia passada na peça “ Entre Quatro Paredes” traz o drama de todos aqueles que vivem uma vida fechada, voltada para si mesmo, uma vida defensiva em relação aos outros, à mercê do olhar dos outros.
Também a peça “As Moscas”, Sartre nos traz uma lição:
Orestes: “um jovem, rico e belo, sábio como um velho, livre de todas as servidões e de todas as crenças sem família, sem pátria, sem religião, sem profissão, livre de todos os compromissos e sabendo que nunca deverá comprometer-se, enfim, um homem superior”.
Por que Orestes não se satisfaz? Dá-se conta de que não tem lembranças, de que nada lhe pertence, de que não é de parte alguma, que não é nada. “Sou livre! E que vazio é a minha alma. Existo apenas…”
Cada personagem de uma peça representa a escolha de uma saída. Cada situação é uma ratoeira, com muros para todos os lados. Não há saídas à escolha; inventa-se uma saída. O indivíduo, então, tem que ser inventado todos os dias; não pode estagnar.
É pela tomada de consciência que começa uma transformação moral, ao longo da História, dentro do relativo. O olhar do outro garante a existência da liberdade. E se o homem é um ser-em-relação, ele é o mundo; não é separado do mundo.A sua consciência, suas reações, suas crenças, suas ideologias, seus medos e ansiedades são semelhantes àqueles do restante da humanidade.Se ele mudar, afetará o todo. De acordo com Sartre, o homem ao se escolher, escolhe toda a humanidade. Nunca foi tão urgente a conscientização disso! E entendemos que o seu ponto de partida é a intencionalidade e não a realidade. Sua meta é examinar a consciência no mundo.
A nossa escolha fundamental de nós mesmos – Projeto Original- é como me estimo ser, como me desejo no mundo. Embora constelada na infância, porque aprendemos através de como sentimos e interpretamos as nossas relações a ver o mundo e ao outro de uma determinada maneira a nos ver no mundo. Respondemos ao olhar do outro, ao toque, à fala…Nossas experiências de vida irão se referenciar nessa base. Todas as escolhas são congruentes com a escolha original. Contudo, as situações da vida são dinâmicas. Cada situação nos instiga a uma nova falta, indica a abertura de possíveis. E tudo isso é visado no presente. Nessa concepção de tempo dinâmico, a presença do outro- o terapeuta espelha as intenções do cliente, descrevendo o seu experienciar conforme expresso na relação. O terapeuta é uma testemunha ocular do compromisso que o cliente passa a estabelecer consigo mesmo.
Mas se toda relação é conflito, como se estabelece? À medida que a liberdade vai sendo estabelecida, e o cliente aceita a sua condição humana, o cliente se faz responsável por aquilo que deseja modificar em si mesmo. Um paradoxo maravilhoso surge: quanto mais livre se vê, mais se reconhece a liberdade do outro. As relações saudáveis são possíveis apenas nessa condição.
Enfim, o trabalho da Psicoterapia Vivencial leva a pessoa a experienciar a sua existência, aceitar a sua condição humana, engajar-se em atos, arriscar ser e aí está a beleza do quadro. A terapia instiga o cliente a descobrir as formas que o impedem de ser livre e, com esta percepção, resgatar a sua liberdade, luxo de todos nós!