Prosa sobre o âmbito relacional da existência, o olhar e o ser-para-outro. Breve diálogo com o pensamento de Sartre.
Por Luiz José Veríssimo

É central para Sartre a apreciação do olhar. No seu conhecido livro O ser e o nada, ele dedica toda uma longa seção sobre a fenomenologia do olhar. Trata-se de um levantamento de como vivenciamos o olhar, tanto do ponto de vista de nos sentirmos vistos, quanto de sermos aquele que olha.
É muito inspiradora, para o trabalho psicoterápico, a análise de Sartre acerca do olhar. Quem explora esse terreno, precisa estudar como Sartre concebe as relações humanas a partir do fenômeno do olhar.
Fizemos um livro com Tereza onde a autora, num certo trecho, pergunta: poderia existir uma consciência no mundo sozinha? E, de pronto, responde: “tudo indica que isso seja impossível, pois cada homem existe no mundo com outros homens” (Erthal e Veríssimo, 2015, p. 54).
O existir em coabitação com outros seres humanos partilhando um espaço comum não é um simples aglomerado de gente, não é só é um estar junto ao outro como se fossem pilhas de roupas amassadas, se bem que, não raro, nos sintamos assim ao andar de ônibus, de metrô ou no meio de uma multidão. O existir humano é um existir conjugado: estamos sempre enovelados com o outro – seja ele planta, gente, animal, etc., numa teia de relações.
Para Sartre, somos a nossa própria consciência. Em termos fenomenológicos, não estamos autorizados a conceber a consciência como uma parte de nossa psique, uma tópica psíquica, um epifenômeno do cérebro, um enfeixamento de processos bioquímicos e fisiológicos. A consciência é um atirar-se para os objetos que ela intenciona. Sartre escolhe, para salientar o caráter intencional da consciência, uma expressão hiperbólica: a consciência é uma explosão para fora de si mesma na direção do que ela visa (2005, p. 56). O que ela visa? O mundo, o corpo, o eu, a natureza, Deus, valores, ideias, conceitos, etc.
Muito bem. Se a consciência é um dirigir-se ao que ela intenciona, ela é, fundamentalmente, relação. Podemos, então, fechar um primeiro retrato do ser humano. Se a consciência é relação, o ser humano é na medida em que se relaciona. E afirmar que o ser humano “é”, é afirmar que ele existe. Se Heidegger (2012) afirma que a existência do ser-no-mundo é a sua existência, Sartre (1987) quer apimentar a assertiva, através da conhecida máxima que propõe que a existência precede a essência. O ser humano não tem nenhuma essência fora seu ser que se projeta constantemente para fora de si mesmo. Esse ser é a consciência, ou, como Sartre designa, o para-si. Por esse nada ontológico, vale dizer, por não portar, de saída, nenhuma determinação que não o ser que se faz na práxis, nas escolhas, no projeto existencial de cada um, Sartre (1987) anuncia outro aspecto imprescindível da consciência: a liberdade.
Detalhe: não vamos confundir o dirigir-se perpetuamente para fora de si mesma que marca a intencionalidade da consciência com algo como a ideia de que a pessoa esteja necessariamente voltada para fora de si, voltada para o “externo”. O caráter extático da consciência é sua transcendência, o não fechar-se como um sistema mecânico que já vem pré-fabricado, seja pela natureza, seja por Deus.
Esse passeio rápido pela fenomenologia e pela ontologia foi para imprimir a conjugação entre a consciência e a existência, que implica um relacionar-se com. Não, há, portanto como existir uma consciência que prescinda do outro para ser consciente de si mesma e do mundo em que se encontra em relação. Até estar no meio de uma multidão é relacionar-se com a multidão, onde a consciência confere vários sentidos a esse momento; não apenas percebe a multidão de uma determinada forma, como se percebe na multidão de
uma determinada forma, e reage emocionalmente ao seu estar na multidão. Por exemplo, numa noite de Réveillon, bem na hora do espocar da meia noite, alguém pode se sentir eufórico, enquanto outra pessoa, mesmo cercada de tanta gente, pode se sentir a pessoa mais solitária do mundo.
Como se dá esse relacionar-se constante da consciência para fora de si mesma? Ou, em termos mais simples, como se constitui o nosso relacionar-se? Sartre injeta o olhar como gênese da consciência de si e do outro. A consciência ao descobrir o outro torna-se um ser-para-outro. “Descubro a mim mesmo, e, ao mesmo tempo, os outros; apreendo-me perante o outro” (Erthal e Veríssimo, 2015, p. 54).
Poderíamos apressadamente concluir que o ser-para-outro é um alguém que vive em função do outro. Essa é, de fato, uma das miríades de possibilidades do ser-para-outro, mas não esgota o assunto. Por isso, precisamos avançar a apresentação do ser-para-outro.
Descobrimo-nos como um ser-para-outro no olhar, mais precisamente, no momento em que nos percebemos vistos pelo outro. Esse é um problema que dá contornos concretos à liberdade, que deixa de ser uma abstração conceitual para se tornar o índice de nossa situação no mundo. A existência do outro é uma liberdade colocada diante de mim. “Nessas condições, a descoberta da minha intimidade desvenda-me simultaneamente, a existência do outro como uma liberdade colocada na minha frente, que só pensa e só quer ou a favor ou contra mim” (Sartre, 1987, p. 16). Com essa citação, não querermos dar a entender uma dicotomia simplista, do tipo: ou o outro está comigo ou está contra mim; e sim, que a liberdade do outro se confronta com a minha. E o fundo dessa fricção é o olhar. “Uma pessoa (…) se escolhe perante o outro. Ela quer obter a liberdade em cada situação particular, mas descobre que sua liberdade articula-se com a liberdade dos outros, da mesma forma que a dos outros articula-se com a dela” (Erthal e Veríssimo, 2015, p. 54-55).
Faz-se mister, desde logo, pontuar que a fenomenologia do olhar levada a cabo por Sartre não se reduz a um problema de visão psicofísica. Precisamos interrogar o que o olhar significa. “Sinto-me constantemente flagrado(a) pelo outro, observo-me, “conheço-me” mediado pelo olhar do outro: “o outro é o mediador indispensável entre mim e mim mesmo” (Erthal e Veríssimo, 2015, p. 58-59). O ser visto trata do sentir-se avaliado, flagrado, sentir que a identidade e a autoestima escorrem em direção ao ser visto pelo outro.
Voltamos, em círculo hermenêutico, ao ponto de partida. É impossível a existência concebida como uma solitária consciência a ditar a ordem e o sentido do mundo. Nesse ponto, há quem, inclusive aposte que o ser como relação não é somente uma essência antropológica, como revela um fundo genuinamente ontológico.
Para estudiosos de religião, como Jack Miles, Jung, Leonardo Boff, Martin Buber, e tantos outros, nem Deus manteve-se isolado: criou o cosmo, o ser humano, a mulher, o homem. Para Sartre, Deus é uma essência que é pura consciência de Si, é ausência de qualquer falta. Jack Miles (1997, p. 449) assinala a passagem bíblica que prescreve o ser humano como imagem e semelhança de Deus (Gênesis, 1, 26). A seguir, pontua: “Essa frase sempre foi lida como uma afirmação da nobreza da humanidade, mas ela pode ser tomada também como uma afirmação da não transparência de Deus para si mesmo. Ele quer uma imagem porque precisa de uma imagem” (Miles, 1997, p. 449). O pensamento de Miles nos trouxe, em outra ocasião, a provocação que reproduzimos. “Esse modo reflexo revela, afinal, uma não transparência inicial de Deus para si mesmo, uma descoberta de Si que convoca um outro, o ser humano” (Veríssimo, 2010, p. 49). Segundo o próprio relato mítico, Deus não criou uma cópia de si mesmo. Ele criou uma criatura finita, mas com um potencial de crescimento e experiências fantástico (nesse sentido, infinita), “que possibilitou a Deus conhecer melhor a Si mesmo a partir da relação com o ser humano e o curso da história” (Veríssimo, 2010, p. 69).
Se deixarmos a existência concreta de Deus entre parênteses, notamos, aqui, que até numa concepção religiosa, a consciência jamais se encarcera em si mesma, como fica estampado na imagem do divino que não prescinde do ser humano, ao revés, é relação com o mundo, com a humanidade e com cada pessoa.
Tereza Erthal acentua que a palavra Deus se tornou vazia de significado em nossa cultura. “A palavra Deus se tornou um conceito fechado. Ao pronunciá-la criamos uma espécie de imagem mental, um velhinho de barbas brancas, isto é, uma representação mental de alguém ou de algo externo a nós, e, quase invariavelmente, do sexo masculino. (…) Além do desgaste da palavra, existe o desgaste do que as religiões institucionalizadas fizeram Dele” (Erthal, 2008, p. 124 e 125).
Sartre trabalha a partir de tal representação tradicional de Deus. Deus é, para Sartre uma consciência Em-si-Para-si, isto é, uma consciência plena, acabada, absoluta, completa, sem nenhum fissura, sem nenhuma possibilidade de transformação, por ser a absoluta perfeição. Por isso, Sartre estima que precisa opor a consciência humana à consciência de Deus. Mas esse é, ressalta Erthal, um problema tipicamente da mente. “quando há identificação com a mente, cria-se uma tela opaca de conceitos entre a pessoa e o eu interior, entre o eu e o outro. É o que dá a sensação de separatividade” (Erthal, 2008, p. 128). Ora, perguntamos, o que é a separatividade senão o desejo de negar a relação?
Erthal acompanha com familiaridade o caráter relacional da consciência. Se a consciência concebe uma imagem a que alguns chamam “Deus”, e, dessa forma, Deus adentra na existência através do imaginário humano, “não há homem sem Deus, não há Deus sem homem. Tudo o que se sabe sobre Deus, sabe-se por meio de um ser humano. Tudo o que se sabe do Absoluto, sabe-se por meio de um ser relativo”. Erthal conclui que se trata de descobrir, em cada ser humano, “esse trabalho de síntese, esse processo de interação entre matéria e espírito (…). Todo homem, budista, cristão ou de outra religião qualquer, descobre essa síntese, e é por isso que se pode falar da síntese em uma linguagem que não é obrigatoriamente religiosa. É preciso tomar consciência dessa realidade que no homem ultrapassa o homem” (Erthal, 2008, p. 130).
Essa realidade é, para Erthal, nada menos que a própria consciência. A consciência ultrapassa as amarras da mente que se prendem a crenças, conceitos e representações tradicionais. Sendo relacional, a consciência se constitui como ser-para-outro, mas também como ser-para-si. Mas, o ser-para-si para adensar-se em suas possibilidades próprias, não precisa matar Deus, como acreditam Sartre, Nietzsche Marx, Freud, os chamados mestres da suspeita. Na verdade, matar Deus ou ficar preso dentro de representações do divino é típico da mente.
Diante de nós abre-se uma janela de compreensão no sentido de que a consciência é relação, incluindo autorrelação, enquanto a mente prima pela separatividade, eu versus você, Eu – Isso, na linguagem de Buber (1977). Arriscaríamos dizer que muitas considerações de Sartre a respeito da consciência enquanto ser-para-outro são descrições precisas de costumeiros estados da mente, que os orientais já conhecem há muito tempo sob a denominação de maya.

Referências
BUBER, Martin. Eu e Tu. Trad. de Newton Aquiles von Zuben. São Paulo: Moraes, 1977.
ERTHAL, Tereza Cristina Saldanha. A visão sartriana de Deus. In ANGERAMI-CAMON, Valdemar Augusto. Psicologia e Religião. São Paulo: Cengage Learning, 2008.
ERTHAL, Tereza Cristina Saldanha e VERÍSSIMO, Luiz José. Sobre o amor, a paixão, o olhar, as relações humanas. Diálogo com Sartre e com o Humanismo. Curitiba: Appris, 2015.
HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Trad. de Márcia Sá Cavalcante Schuback. 6ª ed. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2012.
MILES, Jack. Deus: uma biografia. Trad. de José R. Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1997
SARTRE, Jean-Paul. O existencialismo é um humanismo. Trad. de Rita Correa Guedes. São Paulo: Nova Cultural, 1987.
_____. O ser e o nada. Trad. de Paulo Perdigão. 9ª ed. Petrópolis: Vozes, 2001.
_____. Situações I. Críticas literárias. Trad. de Cristina Prado. São Paulo: Cosac Naify, 2005.
VERÍSSIMO, Luiz José. Ética da reciprocidade. Diálogo com Martin Buber. Rio de Janeiro: Uapê, 2010.

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