Da queda ao vôo próprio.

de Tereza Erthal

Era uma menina livre, sem barreiras mentais ou emocionais. Vivia de bem com a vida, acreditando que todos sentiam o mesmo que ela. Muito espontânea, se lançava ao mundo, sem qualquer resquício de medo. Este é o retrato de Tininha, uma menina linda, esperta e vibrante. Mas existia um problema: o mundo!

Esta é a história deste pequeno ser que, quando se deu conta do mundo em que caiu, começou a perder a sua liberdade.

“Tininha, leve sua irmã até o carro!”
“Mas pai, ela é maior e mais velha que eu, por que preciso cuidar dela sempre?”
“Porque eu estou mandando!”

Este é um exemplo de um diálogo com o pai, um homem autoritário e não muito afetivo. A mãe parecia ser mais amiga e afetiva, mas precisava se ocupar muito com as suas tarefas diárias, não sobrando tempo pra apreciar o mundo mágico de Tininha, afinal, era perda de tempo.

“Mãe, olhe que dia lindo e ensolarado! Venha pegar um sol no rosto e ver os pássaros cantando!”
“ Tininha, você não está vendo que estou ocupada fazendo o almoço? Não tenho tempo pra ver passarinhos! Ainda tenho que ir ao banco, fazer compras, etc.Ufa! Meu dia está cheio de obrigações e você vem com essa história de dia ensolarado! Assiste você a este espetáculo enquanto é criança e pode!”, dizia a mãe, cheia de tarefas e compromissos que a tornavam uma pessoa amarga.
Tininha a tudo questionava, mas seu critério era o que sentia no peito, isto é, dizia que era um pulsar que sempre apontava a direção a seguir. Costumava agir permitindo que tudo pudesse fluir sem a desastrosa interferência da sua mente, embora não soubesse ao certo como descrever isso. Evidentemente, ouvia todo tipo de piada por isso, mas era um critério infalível! Tinha uma forma fácil de se relacionar com as pessoas e se lançava no mundo, sem ressalvas. Pode-se dizer que era feliz, mas isso iria durar pouco, pois tudo que é ignorado, mais cedo ou mais tarde, morre, desaparece.
As crianças funcionam através da essência, ou pureza, enquanto não tem uma personalidade formada. Tal essência apresenta-se inoperante no adulto, que nem se apercebe disso. Sendo puras, confiam plenamente na fluidez que as conduz, sem tentar entender, já que todas as ações mentais surgem depois com a “lógica” dos adultos.
Na escola, Tininha sofreu todos os tipos de pressão por ser muito espontânea. Castigos, suspensões e bilhetinhos pros pais, eram comuns, embora ela fosse uma aluna exemplar, do ponto de vista acadêmico. Era por demais inclusiva e sempre dividia tudo o que tinha, não evitando dar tudo o que tivesse, se necessário fosse. Vivia a fantasia de um dia criar uma cidadezinha capaz de abrigar a todos aqueles que vissem a vida como ela. Claro que isso era devido ao fato de Tininha nunca ter se sentido incluída em nada, por ninguém. Estranhava o fato de que as pessoas que mais ajudava, eram aquelas que logo a seguir lhe traíam. Não conseguia entender (neste estágio da vida, ela já usava mais a mente) o que acontecia. Como uma pessoa pede ajuda e, depois de recebê-la, ataca quem lhe deu a mão? Embora questionasse, não entrava em embates, apenas vivenciava, pois, de alguma forma, sabia que quanto mais combatia, mais estimulava o fato.
Tininha assim caminhava: questionando tudo e, agora, também a si mesma. Se todos a apontavam como estranha e diferente, e a faziam pagar um enorme preço pra ser aceita, sentia-se sem valor e, consequentemente, começou a mudar. Tornou-se, com o tempo, alguém apegada, crítica, insegura e com dificuldades intelectuais. O medo se apossou deste ser, como uma consequência das crenças e da ignorância de si. Encarnou o papel oposto ao que viera experienciar.
Na sua fase adolescente, e já cheia de papéis aprendidos pela vida, Tininha começou a se lançar nas relações afetivas. Os meninos a disputavam, mas ela nem sequer percebia que era admirada. As amigas, embora soubessem deste lado atrativo de Tininha, não a alarmavam para não terem que entrar na disputa com ela. Ao contrário, diziam que os meninos não a olhavam e assim garantiam algum olhar pra si mesmas. Com isto, Tininha foi perdendo o contato com a sua imagem corporal, com a sua capacidade de atrair pessoas, mas, acima de tudo, com a fé em si mesma. Quem pede amor, não recebe ou tem amor; é preciso sê-lo! Mas Tininha não se lembrava mais disso!
Tininha era filha caçula, mas suas responsabilidades a colocavam na posição da mais velha das irmãs. Sempre muito estudiosa e responsável com as suas coisas e pessoas, era-lhe cobrado um comportamento protetor para com a irmã que, por sua vez, exibia uma conduta passiva e despreparada com a vida. Sempre achava que sua irmã deveria ser uma boa amiga com quem pudesse dividir tudo. Tentou fazer algumas amigas de irmãs, mas sempre “apanhava” a seguir. Foi criando um autoconceito diminuído e se lançava apenas aos estudos, com confiança e amor. Escrevia solitariamente, porém, nestes instantes, era feliz. Sua mãe demonstrava um certo ciúme da admiração que seu pai nutria, silenciosamente, por ela e aí passava a proteger a outra filha (ou a si mesma). Uma espécie de alinhamento com uma pessoa considerada “ normal” e compatível com as suas características.
Tininha teve muitos namorados, nenhum excedendo o tempo de dois meses. Nada percebia nisso, mas desenvolveu uma barreira protetora que a impedia de se envolver muito e, assim, abandonava antes que fosse abandonada. Exibiu quantidades; esqueceu a qualidade!
Estudiosa do jeito que era, não teve dificuldade em adquirir uma vaga em uma universidade importante na sua cidade. Os estudos sempre foram o seu grande trunfo e uma espécie de porta para a liberdade, segundo ela. Era ansiosa para descobrir o mundo e queria aprender tudo o que pudesse alcançar. Em tudo o que se metia, deixava a sua própria marca, como se quisesse se convencer de que era alguém importante também. Ledo engano! Tininha nunca se convencia e precisava fazer cada vez mais. Óbvio que este comportamento a ajudou de muitas formas, mas a afastou de sua essência linda e espontânea. Não era mais aquela menina feliz e livre, mas uma mocinha insegura, carente e medrosa. Sua coragem não ultrapassava o mundo inserido nos livros!
Formou-se com louvor e já começou bem a sua profissão. Escolheu cursar Pedagogia para trabalhar com crianças carentes e, mais tarde, com crianças superdotadas, incompreendidas pelos demais. Foi aí que começou uma nova fase. Mas precisa ser dito que, também aí, iniciaram suas buscas pela espiritualidade. Sabia separar a psicologia da religiosidade, mas não sabia usá-las para alcançar o verdadeiro conhecimento de si mesma. Buscava muito! Acreditava que um dia encontraria uma boa explicação pra tudo o que vivera e uma saída para todos os seus sofrimentos. E já que a Pedagogia lhe trouxe algo, talvez a espiritualidade trouxesse o resto, afinal era o que pregavam. Arrumou mais uma expectativa, sem ter se dado conta disso.
Sentia-se muito só e queria encontrar seu príncipe. Isto mesmo, era um príncipe que imaginava! Alguém que lhe retiraria da prisão onde se encontrava. Muito exigente, nenhum candidato parecia preencher seus requisitos e o resultado era a frustração.Tinha intenções, projetadas no mundo, mas nunca conseguia realizá-las, de fato. Rodou por todas as religiões, conheceu mestres, fez iniciações, muitos cursos e só o que conseguia era se arruinar ainda mais. Estava de mal com deus e decidiu abandoná-lo e a tudo que a ele se relacionava. Voltou-se pro trabalho mais fortemente e fez mais uma marca: tornou-se a maior especialista no assunto que estudava. Era chamada para palestras no seu país, e fora dele, com muita frequência. Mas o vazio era grande e toda esta plateia, que lhe admirava, não era capaz de lhe trazer conforto, ou alegria.
Depois de muito buscar, desiludida com a vida que escolhera viver, decidiu mudar tudo: de trabalho, de cidade, de país. Sabia que para o novo surgir, o velho tinha que morrer! Foi encontrar a sua melhor amiga dos últimos tempos. Foi um encontro feliz, embora assustador. Aquela menina destemida e desbravadora já não habitava mais aquele corpinho mais velho e condicionado. Muitas crenças se formaram e bloqueavam a verdadeira visão que poderia ter de si.
Sua amiga Nina lhe apresentou uns autores diferentes que estudava, filósofos e psicólogos existenciais, que traziam conteúdos interessantes. Fazia o confronto com o que a pessoa fazia de si mesma. Ensinava a liberdade de ser e as responsabilidades de suas escolhas. Falava de auto estima, da angústia de lidar com as nossas mazelas, mas necessária ao crescimento. Era algo muito assustador e, ao mesmo tempo, verdadeiro. Por que verdadeiro pra ela? Porque resgatou aquele “pulsar” no peito, que agora sabia que era vibração. Tudo começou a vibrar e sabia que era a escolha certa a fazer, mas e o medo? Não apenas devorou tudo o que podia, como foi procurar um dos autores para desenvolver o processo terapêutico. Entrou em contato com as suas crenças: familiar, educacional, profissão, religião, política, tradições, dualidades…Pra uma menina que se conheceu livre, entrar em contato com esta realidade aprisionante a abateu. Ler autores mostrando o que distorcemos e porque o fazemos, era maravilhoso,mas difícil de encarar. A terapia a ajudaria nesta tarefa. Tinha se aguarrado à espiritualidade como resposta externa à tudo, e agora via que era mais uma ilusão que semearam dentro dela. A constatação de que fora livre e que deixou de ser devido a tudo a que foi submetida, a fazia viver na sofreguidão. A boa nova era que tal liberdade podia ser resgatada e estava ansiosa por isso.Na continuidade das leituras, descobriu que, apesar da dor, era necessário encarar todas as suas construções. Ainda sem acreditar muito em si mesma, decidiu mergulhar. Sentia-se aceita incondicionalmente pela sua terapeuta e decidiu arriscar.
Geralmente, o medo de voar, a insegurança de dar um passo para a sua liberdade, a dúvida se a própria autonomia é possível e a fará feliz, surgem com frequência nos pensamentos. Mas é preciso experimentar e não apenas intencionar!
Um desconforto insuportável lhe visitava sempre. Vômitos, dores no corpo, fortes dores intestinais eram alguns dos sintomas mais frequentes, de quem estava visitando áreas antes ocultas pela má fé que exercia sobre si.

“Desordem espaço temporal, desinteresse externo, muito silêncio. Meu ouvido apita e ouço a vibração do meu peito. Nestes momentos, nenhum pensamento me invade ou patina na minha cabeça. É muito bom porque vivo instantes de paz. Será que esta é a porta pela qual preciso entrar e me estabelecer?” comentou ela com seu psicoterapeuta.

Tudo isso se apresentou a ela porque se deu conta de que aprendera a viver com o olhar pra fora de si, buscando conhecimento e verdade de outros, ou outra forma de preenchimento do vazio, que sentia desde menina. Viu que para olhar na direção certa, tinha que se auto observar bem, isto é, registrar tudo, sem críticas ou julgamentos. Experimentou! Foi aos poucos permitindo que sua vida lhe levasse e isso se deu porque ficou consciente do seu auto funcionamento. O olhar de antes estava fora dela, se perdendo nas preocupações deste mundo. Acumulou tantas crenças que já não sabia mais quem era.
Tomar consciência de todas as crenças que adotou ao longo da sua vida não era difícil; difícil era olhar pra elas sem qualquer “pré-conceito”. Ter percepção sobre qualquer coisa não significa que esta coisa mude; é preciso tomar consciência plena e experienciar. Tininha foi aprendendo que tinha que se comprometer com a prática, ou seja, transformando-a em seu hábito diário. Na verdade, aquele que se permite voar, reconhece a sua realidade e segue a fluidez do instante. Contempla e curte a viagem da vida. Esta era a grande aprendizagem desta menina grande.

“ Na profunda observação de mim mesma, percebo que todo o fenômeno que surge se desintegra ao ser observado. Nada é necessário fazer, a não ser experienciar. Enxerga-se a partir de dentro da experiência, onde o pensamento é transcendido e perde o poder de conduzir. E neste momento, tudo se encaixa. Esta tem sido a minha mudança de olhar sobre tudo, especialmente sobre a minha pessoa.”, expressou em uma de suas sessões.

O processo de desconstrução havia começado e Tininha, ainda que com um bom conhecimento do ser humano, pelo seu trabalho e estudo, não podia se dar conta de que as crenças aderem como máscaras no rosto e, ao serem retiradas, a face sangra e dói. Sangrou! Temeu e tremeu! mas não deixou de se auto observar. Era uma mudança radical: de mental ou racional, tão valorizado antes, precisou aprender a ser “coração”. Não era preciso mais algum conceito mental pra viver tudo o que observava, mas apenas experienciar. Conseguiu resgatar a sua espontaneidade já neste momento. A consequência disso foi descobrir que viver podia ser tão fácil, pois era conduzida pelo seu centro de comando, o coração, abafado pelas tantas crenças que se deixara levar. Este processo era uma espécie de constatação. Dizia pra si mesma, e pra sua amiga, que voava, que era conduzida e que aprendera, finalmente, a viver apenas no Agora.
Tininha foi sendo “levada”, cada vez mais, e nenhuma questão lhe invadia. De repente, percebeu que todas as respostas estavam dentro dela. Quando a espontaneidade é permitida, todas as comprovações e estabelecimentos de sua graça se apresentam. Quem tenta entender e identificar alguma coisa, não tem a chance de viver a graça e o êxtase. Sua forma de viver, anteriormente, já não fazia mais sentido. Aliás, nada fazia mais sentido a não ser olhar pra dentro de si mesma e experienciar o que tivesse que viver.
Discutia estes assuntos cada vez mais e foi mergulhando, mergulhando, até que sentiu que uma clareza, absurda de tão clara, lhe pertencia, de vez em quando. Sabia que se continuasse o seu processo, viveria cada vez mais de forma límpida e isso era fantástico.
Todas as questões anteriores perderam a luz. É que quando se retira o olhar, elas simplesmente morrem. O que aprendeu foi que estava na direção certa e este era o seu objetivo de vida. Namorar? Príncipes? Rejeição? Medo? Nada disso lhe pertencia mais, pois o que mais queria era deixar a vida lhe mostrar o caminho. E exatamente por isso, o amor a ela se apresentou. O amor vivido na unidade!
O que aconteceu à Tininha? Modificou o seu olhar! Resgatou a sua essência! Toda a sua espontaneidade e destemor, que pertencem a todos, estavam impedidos de vir à tona em função de conceitos ou crenças que o mundo lhe apresentou. É preciso coragem para desconstruir tudo e deixar reinar a verdadeira natureza! Isso ela fez e hoje vive plena, voando e aprendendo, apesar do mundo.
Este ser, como muitos neste mundo, que havia perdido a liberdade essencial, descobriu um método que lhe fez reencontrar sua verdade, sua vibração. Não é mais um caminho com retorno, ao contrário, não tem volta, não se quer voltar!!! Dizia que tinha asas e que nada mais a impedia de voar. Tininha resgatou a sua liberdade e descobriu que apenas sendo livre podia ser feliz novamente.
Enquanto não experimentamos a troca de olhar sobre a nossa própria realidade, nos mantemos na ilusão de que somos livres. Para ter a liberdade, é preciso sê-la!! A Paz surge quando calamos a nossa personalidade e não somos mais reféns do seu sistema de crenças. Simplesmente permitindo que o centro de autonomia a tudo processe. Estamos tão imersos na ignorância sobre nós mesmos que nem percebemos o quanto somos manipulados. Transformamo-nos em verdadeiras marionetes! Seguindo idéias e pessoas, mais nos afastamos de quem realmente somos. Mas podemos mudar isso, como o fez Tininha, e assegurarmos o direito à nossa liberdade.
Geralmente, quando olhamos no espelho o que vemos? Vemos as nossas crenças, as nossas máscaras, o monstro que nos tornamos. Agimos neste mundo por conveniências, pois esta é a distorção. A inclusão que traz a unidade é perdida e os papéis representados neste mundo se tornam os nossos personagens diários. A zona de conforto promovida pela personalidade, nos faz ignorar o nosso real estado. Ou nos enganamos diariamente, ou focamos na nossa mudança de olhar! E este é um trabalho pessoal; ninguém pode fazê-lo por nós!
O que eu posso dizer de tudo isso? Que também aprendi muito com Tininha e a maior das aprendizagens é que toda transformação é possível, se nos propomos a ousar. Somos seres livres e precisamos assumir esta verdade!!!Desejo a vocês, uma excelente transformação!
Feliz Ano Novo!!!

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