Existencialismo e a medicação

Existencialismo e medição
Muitos alunos me perguntam como se configura a relação entre a psicoterapia e a medicação. Em primeiro lugar, precisamos deixar claro que nenhum psicólogo está apto para medicar. Este papel é próprio dos médicos, no caso psiquiatras ou neurologistas, que têm um estudo apropriado para isto. Nosso papel é de indicar um destes profissionais, conforme o caso, e estabelecer um diálogo com eles, aumentando a chance de sucesso do atendimento.
Mas quando fazer este tipo de encaminhamento?
Os medicamentos agem na conseqüência comportamental, enquanto a psicoterapia age sobre a relação de construção da doença. Um cliente com síndrome de ansiedade, por exemplo, necessita de um medicamento, caso este sintoma esteja acima do controle da pessoa, atrapalhando ao ponto de não mais conviver socialmente. A terapia vai atuar na forma como a ansiedade acontece e o que a dispara. Alguns falam que a psicoterapia ataca a causa do problema, mas este ponto se torna bem questionável na ótica existencial.
No Existencialismo, vemos, claramente, a diferença entre causa e motivo: enquanto a causa é a apreciação objetiva de uma situação, o que deu origem real ao problema em questão, o motivo é a apreensão subjetiva de uma causa,expressa pelos desejos, emoções, pensamentos que normalmente acompanham o ato. Trata-se de uma apreensão autoconsciente, um projeto inicial de si até um determinado fim. Apreende-se o mundo como causa. Posso apreender uma série de fatores, como a grande quantidade de trabalho, a preocupação excessiva, a fraca alimentação, etc, que são motivos, como causa para a minha fadiga. As causas somente terão significado quando inseridas no projeto de alguém: aparece em e através do projeto de uma ação.
“ Não é por ser livre que os motivos são ineficazes, mas porque eles são ineficazes é que eu sou livre. A consciência é sempre consciência de qualquer coisa e, por consequência, o motivo não pode aparecer senão como correlação de uma consciência de motivo, isto é, o motivo não está nunca na consciência, ele existe apenas pela consciência. E porque o motivo não pode surgir senão como aparição, é que ele se constitui como ineficaz; a sua transcendência está, por natureza, compreendida e incluída na consciência e, sendo assim, a consciência escapa-se-lhe, ao estabelecê-lo.” Jolivet, 1975.
Causa, motivo e fim são indissociáveis da consciência que se projeta até suas possibilidades e se define por elas. Embora possamos dizer que todo ato tenha um motivo, não podemos extrair daí que o motivo seja capaz de causar o ato. Dois eventos fortemente correlacionados não necessariamente estabelecem uma relação causal; estão apenas fortemente associados. Na verdade, o motivo, o ato e o fim são partes de uma mesma estrutura em que cada um objetiva os outros dois. No entanto, é o ato que será capaz de decidir o fim e os motivos, pois o ato é expressão de liberdade. Ao contrário do determinismo, que prega uma certa continuidade da existência, concebendo o motivo como fato psicológico capaz de gerar o ato, da mesma forma que a causa determina o efeito, o Existencialismo não considera causa e motivo como coisas. Ambos são vistos como tendo significado atribuído exclusivamente pela pessoa. Para um fenômeno ter causa é preciso que esta seja experienciada como tal. Este significado depende do projeto futuro. Assim, o indivíduo determina os significados através das ações pelas quais se projeta até seus fins. Sendo o projeto uma livre produção de um fim, e que lhe confere significado. Causa, motivo e fim formam uma unidade difícil de dissociar. Portanto, é bastante difícil dizer que algo seja a real causa de um problema pelo simples fato de que muitas outras variáveis entraram neste curso posteriormente e, muitas vezes, a primeira causa ficou secundária diante da força de alguma destas variáveis. Quando trabalhamos com os motivos, muitas questões se aclaram e uma compreensão maior se torna viável.
Esclarecido este ponto, entramos em contato com a classificação diagnóstica e o Existencialismo. O que seria uma doença mental? Para nós existencialistas, não existe uma teoria geral que seja capaz de explicar a patologia da conduta, pois isso iria contra os princípios filosóficos propostos, a saber, o de que cada indivíduo é uma pessoa concreta, única, livre e realizadora de si mesma; rebelde, portanto, a enquadramentos diagnósticos. Preocupados em ressaltar a dignidade existencial, repudiamos a classificação, já que fragmenta o homem. Estamos mais preocupados em “des-cobrir” o molde sobre o qual o cliente se criou do que lhe impor um padrão. A perspectiva do trabalho é descritiva, uma vez que somente se pode compreender qualquer desordem de conduta de um indivíduo enquanto tal a partir dele mesmo, isto é, tomando-o como unidade fundamental. Mas encarar os problemas como oriundos de conflitos, aspirações, enfim, angústias, decorrentes de necessidades existenciais, é ainda muito difícil de ser aceito. A conscientização de si mesmo não é algo fácil de ser atingido pelo cliente, uma vez que ocasiona uma enorme carga emocional. Quando o peso é grande, é mais fácil obter refúgio em divindades ou na expectativa de que algum destino se faz cumprir.
O problema da classificação psiquiátrica parece residir numa única premissa: existem comportamentos anormais que precisam ser categorizados em prol de um mérito moral. É como se o diagnóstico psiquiátrico definisse a identidade pessoal. Mas classificar algo ou pessoas é próprio da ciência, para obter controle sobre aquilo que é nomeado. Claro que a classificação facilita a linguagem entre profissionais, objetivando a linguagem, favorecendo análises estatísticas e certas previsões de comportamento. Entretanto, considerando que o comportamento humano é algo único, baseado na livre escolha, é um contra senso tentar encaixá-lo em algo pré-existente.
Existe certa lógica em considerar que, de um certo modo, somos um tanto “ insanos”. Basta comparar as nossas ações diárias, no que toca a seu significado, com as atividades de outros no mundo, que nos parecem, às vezes, por demais ridículas. Como se pode ser tão são diante de tanta insanidade? Óbvio que existem aqueles que têm um tipo específico de insanidade, e que por isso a sofrem de um modo diferente daquele experimentado por nós. Parece que eles têm o direito de viver uma existência humana, ainda que de uma perspectiva diferente da nossa. Assim, existe uma noção limitada de insanidade que se antagoniza com a noção de uma insanidade viável.
Não se trata de negar que existem diferentes modos de “ser-no-mundo”, mas o que se questiona é o propósito do ato classificatório que, muitas vezes, leva a uma forma desumana e impossível de lidar com os problemas existenciais do ser. O árbitro teórico é tão amplo e de tantas conseqüências que não é raro se verificar o desenvolvimento de doenças iatrogênicas. Além do mais, quando se fala em doença, tem-se como parâmetro a saúde; e determinar um conceito de saúde parece inútil, quando se tem imaginado a essência do homem como ser não acabado. (Jaspers, 1966)
Os clientes que normalmente visitam nossos consultórios são “normais “, com problemas existenciais, ou neuróticos, apresentando um conjunto de comportamentos aprendidos que serviram diante de uma situação de sufoco, mas que já caducaram. O cliente, neste caso, não se dá conta de que a sua utilidade expirou e continua dando as mesmas respostas a todas as situações ameaçadoras. A neurose é uma espécie de método de conduta desenvolvido para defender a própria existência. Obviamente, a noção da própria existência está distorcida, mas o comportamento resultante está coerente com esta imagem criada. Também os marcos diferenciais são muito difíceis de delimitar, pois cada indivíduo desenvolve uma dinâmica própria. Contudo, existem comportamentos que se mostram bem característicos, exatamente pelo exagero de suas manifestações.
O desajuste é o resultado de uma escolha que o indivíduo faz, produto de sua própria criação. A liberdade para escolher não necessariamente assegura que as escolhas sejam sábias. A desordem da conduta surge como resultado do conflito entre mudar-se (de ser) e a de manter-se inalterado (não ser). A ansiedade resultante faz nascer o desajuste, uma forma que o indivíduo escolheu para lidar com o peso da angústia. May nos diz que a neurose é o método que o indivíduo usa a fim de preservar o seu centro. Pra ele, neurose é uma adaptação, justamente aí que radica o seu “mal”.
Se a conscientização da liberdade, pelo próprio indivíduo, é o que dá significado à vida, todo o uso da neurose como forma de manipulação do meio é um resultado de uma perda do sentido da vida. A terapia pode dar conta deste aspecto, mas das conseqüentes ramificações sintomáticas, o profissional apropriado é o psiquiatra. Uma avaliação diagnóstica pode ser importante para diminuir sintomas, como a ansiedade ou a depressão, que um paciente vive. Uma vez suavizada a sintomatologia, o caminho fica mais aberto para os resultados terapêuticos.
Mas ainda têm os pacientes psicóticos, menos comuns nos consultórios de psicoterapia. Estes requerem um acompanhamento medicamentoso com mais freqüência. Costumo dizer que, nestes pacientes somos mais facilitadores e coadjuvantes do que profissionais principais. Nosso papel seria o de ajudar a socialização ou adaptação social.
Se a nossa preocupação é idiossincrática, nada mais importante do que captá-la para ajudar o cliente a se estruturar. Se a percepção do mundo do “neurótico” está distorcida a ponto de não estar vivendo bem com ele mesmo, o comportamento determinado pela sua percepção será alterado na medida em que se modifica. Um trabalho conjunto com o médico é super necessário, quando há a prescrição medicamentosa. O psiquiatra necessita saber como são os seus projetos, qual a forma de manipular os sintomas, a forma como escolhe lidar com o mundo… Embora tenha recursos para fazer uma boa avaliação, muitas coisas escapam à primeira vista. Trago um exemplo que pode vir a clarificar este ponto:
Fui procurada por uma mulher que vivia em depressão. Tinha acabado de ter um filho e, durante a gravidez não fez uso de nenhum medicamento pra assegurar a saúde do bebê. Estava em ponto de bala! Chorava muito e dizia que não havia se matado por causa do filho. Nada em sua vida estava fora do lugar, mas sentia como se nada fizesse sentido. Formada, não conseguia trabalhar por causa dos seus sintomas. À medida que fomos estreitando o relacionamento clínico, fui percebendo que a sua ansiedade era gigante e, por isso, nada começava, pois não conseguia concluir. Seu diagnóstico tinha sido de depressão, no que eu discordava. Entrei em contato com a psiquiatra e tivemos um ótimo diálogo. Na minha opinião, sentia que era mais um transtorno de ansiedade e que, no pico, resultava numa depressão forte. Sugeri que os remédios fossem dirigidos para a ansiedade, e ela concordou em experimentar. O que tinha demorado meses para melhorar, em um mês tivemos resultado favorável. Claro que a parte medicamentosa, dada pela psiquiatra, foi de suma importância, mas foi através do diálogo entre as partes interessadas que a cura se desenhou. A parceria é extremamente necessária.
Não posso acreditar que um tratamento psicoterápico resulte em sucesso se não houver um diálogo inteligente entre os médicos responsáveis pelo paciente. Este diálogo não precisa ser apenas com o psiquiatra. Tive uma experiência bem interessante:
Uma paciente foi-me indicada para fazer um diagnóstico (eu era professora de psicometria). Seu marido me disse que ela tinha tido surtos e achou melhor trazê-la do sul pra cá e se tratar. Ele era médico cardiologista e viu seus sintomas desta forma. Achou que poderia ser uma espécie de comportamento anti-social também, pois depois que emagreceu muitos quilos, passou a se exibir na pequena cidade, com mini saias, pegando garupas de garotões, etc. Fiz várias entrevistas e apliquei testes que pudessem elucidar tal mistério. Em nenhum momento encontrei qualquer comportamento que indicasse isso. Continuei pesquisando. Encaminhei-a a um amigo psiquiatra pra fazer uma avaliação. Nada encontrou, a não ser comportamentos neuróticos. Pesquisando encontrei que ela havia tomado remédios para a tireóide para poder emagrecer, atingindo a hipófise. O teor do remédio era alto e, como li, os sintomas podiam ser semelhantes a uma crise psicótica. Além do mais, ela estava se comportando como uma adolescente que queria recuperar o tempo perdido ( havia perdido 32 quilos em dois meses!). Em diálogo com o endocrinologista e com o psiquiatra amigo, retiramos os remédios desnecessários e uma psicoterapia teve início, pra fazer a adaptação a esta nova imagem. Apenas um ansiolítico e muitas conversas a fizeram restaurar o equilíbrio.
Do que foi exposto, fica claro que a medicação tem sua importância, que somente pode ser administrada por um médico especialista e que o terapeuta precisa trabalhar em conjunto com o médico que assiste o paciente ( seja ele psiquiatra, neurologista, endocrinologista, ou de outra natureza). Chama-se a isso de abordagem interdisciplinar, super apropriada quando se pensa no paciente como uma pessoa. Desta forma, podemos trabalhar a pessoa como um todo e cada profissional envolvido é capaz de dar a sua contribuição.
Conclusão:
Terapias que buscam a compreensão do indivíduo apoiadas simplesmente no puro arbítrio teórico, fazem um entendimento distorcido, reforçando apenas a sua verdade. A rigidez de seus dogmas implica em rigidez de atitudes e o resultado é a perda da compreensão real do cliente. Um estudo criterioso sobre quem está diante de nós faz-nos contactar com os profissionais que também trabalham o paciente, em algum grau. Pode ser que seja necessário um encaminhamento para amenizar os sintomas que atrapalham a visão da realidade. Mas não basta apenas esta indicação. É necessário que trabalhem juntos em benefício do cliente.

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